sábado, 16 de janeiro de 2010

Samantha, Vênus de Willendorf









Vamos começar a pôr os pingos nos i's. Muita besteira já foi dita sobre Samantha, e é tempo de esclarecer algumas obviedades. Um exemplo desse tipo de estupidez é situar o seriado naquelas velhas questões de gênero, aquele "machismo" ultrajante e etc. Chegaram a pensar que esse suposto anacronismo ia atrapalhar o filme de 2005. Para o nosso bem e por respeito ao que Samantha significa, eles bem que poderiam ter acreditado nessa balela e não ter feito aquele patético e desonesto "Bewitched" de Nora Ephrom (você, que está lendo, com certeza concorda comigo que aquilo tenha sido um dos piores filmes de todos os tempos). O que eu quero dizer é que o machismo no seriado é, no limite, uma das piadas. Qualquer olhadela mesmo preguiçosa sobre a obra mostra claramente que, ao contrário do que a miopia da turba permite inferir, o que se diz ali do arquétipo feminino é uma verdadeira apologia da dominação oculta do mundo.

O equívoco é bem simples: Samantha é escrava apenas de sua ignorância, e não de uma condição social. Essa idéia de que "Você colheu um limão no jardim do amor" é febrilmente repetida por Endora (Endora, a sogra, é divorciada, absolutamente independente e segura; ainda assim, nada tem de "feminista", porque, nós, mortais, e quaisquer "grandes questões" que possamos ter são invariavelmente irrelevantes para ela - para os mortais a independência é uma conquista cultural; para um bruxo, é uma extensão natural da personalidade). Samantha é um pouco mais complexa do que uma dona de casa do subúrbio tentando fazer o serviço doméstico sem usar magia porque "seu marido mandou". O que acontece, ali, na verdade, é um embuste lógico: essa submissão poderia até ser verdadeira para alguma mulher, mas Samantha não é uma mulher. Ela é tão mulher quanto Jesus era um homem. É uma mulher que recebeu a impostura de ser bruxa. Ela é, portanto, uma Divindade, como a Mulher Maravilha, Atena ou Nossa Senhora de Fátima.














Existe ainda o efeito complicador dos componentes humanos, provavelmente devido a milênios de cruzamentos raciais - a situação mestiça análoga à do Dr. Spock e Hermione Granger. Essa questão não está exposta claramente, mas isto pode ser intuído tanto do preconceito de Endora quanto de outros casais interraciais que aparecem em vários episódios. Tabatha, a filha, é bruxa, mas seu irmão Adam não, por exemplo. O resultado é que eles acabam se comportando como os deuses na Ilíada: a parte da alma que é humana afeta o equilíbrio do resto. Eles estão lá, no Olimpo, mas também estão interferindo na guerra de Tróia, tomando partido, descendo e cruzando conosco, ou seja, se voltando para um monte de coisas que não a si mesmos.

Samantha, como observou Nascimento, é "um anjo caído pelo amor". Ela não precisa de Darrin, nem de nenhuma experiência emocionante aqui na periferia. Seu dia é o século, e essa passagem pelo subúrbio e pela condição humana não lhe causa dano, ainda que só pelo efêmero, em si, desse período. Ser uma epifania e se reduzir ao casamento pequeno-burguês é a uma concessão temporária, independente do resto. Assim, o casal que mora em Morning Glory é a união de um marido publicitário de sucesso e uma esposa que é uma deidade de dezenas de séculos de idade que fala todas as línguas (mortas ou vivas), esteve presente em todos os eventos históricos importantes, foi tantas vezes até a Lua que desdenha do projeto Apollo, e que - no caso específico de Samantha - é quase como uma depósito ambulante de sabedoria.

Jeannie e Samantha são a metáfora da latência de um inconsciente coletivo recorrente, quase regular, do conteúdo feminino. As mulheres são submissas, mas por opção (no caso de Samantha) ou feitiche (como Jeannie). E possuem Poder, como nunca cada qual de seus respectivos homens possuiu. Ao mesmo tempo, secreta e indiscutivelmente, tomando a rédea do mundo. A maior atribuição de carisma desde as deusas da fertilidade do neolítico.



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