terça-feira, 23 de março de 2010

"Lua Nova" e o fim do cinema






Há coisa de um mês, numa exibição de "Um pistoleiro chamado Papaco" (1986), no bar Astronete (SP), o diretor Mário Vaz Filho respondeu a algumas perguntas no final da exibição, e teve espaço pra colocar algumas verdades sobre o cinema brasileiro e o cinema.

Explicou que é fácil entender porque um filme como "Se eu fosse você" estoura - porque é um produto feito APENAS para isso - e o pior é que isso não implicaria em necessariamente ser ruim (coisa que não aconteceu no caso deste filme). Como sabemos, casais são o público majoritário do cinema, e a renda das salas vem na sua grande maioria da venda de pipoca. O ingresso é uma mera tarifa que pagamos pra ter o direito de pagar um extorsivo preço na pipoca.

Não existe nada mais adequado ao paladar refinado do "casal" do que a troca de papéis. A Disney faz um desses por ano, já vi "mamãe troca com filha", "papai com filho", "amigo com amiga", etc. É quase automático imaginar situações cômicas e leves diante disso. E vai servir pra QUALQUER casal - esse, sim, é o ponto mais importante.

E é aí que a coisa toma seu rumo, porque você percebe que aquilo não é um filme, é um aparato meticulosamente estudado pra fazer a gente achar que está tendo um bom motivo pra comer pipoca. Volto a dizer: isso não implica em se fazer um filme ruim, necessariamente, mas se por exemplo a necessidade de higienizar e aplainar a trama se sobrepõe a tudo (para atrair o maior número possível de compradores de pipoca), aí teremos uma perda inestimável. Porque é possível fazer um filme de camadas, leve e espesso ao mesmo tempo, ou ter respeito pelo espectador de puro deleite com uma trama que tenha uma complexidade mínima, ou qualquer coisa que o valha, mas não! é inacreditavelmente mais fácil ficar só com o garantido mesmo. Como se os publicitários e cineastas fossem indistingüíveis, de fato.

Quase todo filme é um contrato, é comercial em essência, e a quantidade de dinheiro que ele vai fazer é uma variável do processo. O problema é quando isso é a ÚNICA variável, porque daí pode surgir esse tipo de coisa como a prevalência da venda de pipoca sobre a audição da peça. Daí o filme pode prescindir de ter sentido, de ser mensagem ou de acrescentar seja lá o que for (aquelas funções mínimas da peça artística, aquilo que melhor a define venalmente). Um display de Doritos no supermercado não precisa te atingir, conversar ou transformar - aquilo é só um grito no imperativo: COMPRE! . Se a pipoca não fosse o motor da indústria, o filme teria que ter mérito em si, porque o produto vendido ali seria ele próprio, e daí a sua capacidade de fazê-lo emular sensações e transformar o espectador seria a variável mais relevante.

"Lua Nova" é o fim do cinema. É uma peça dramática sem drama, um roteiro sem trama, ação sem sentido e pequenas intersecções de nada com coisa alguma. Ás vezes a gente usa essas expressões num sentido literário, metafórico, mas dizer que em "Lua Nova" não acontece NADA é tecnicamente verdade, mesmo. Cada movimento de câmera se encerra num plano que implora por um logotipo ou um slogan embaixo. A gente ESPERA a marca, a frase, porque a fotografia é de publicidade, o ritmo narrativo é o de um comercial, e daí você entende o lance: esse NADA (que é a ausência de ação e/ou trama) é funcional mesmo, porque talvez a ação atrapalhe o merchandising; ou, ainda, muito mais importante: talvez a ação atrapalhe a mastigação da pipoca.

Quer saber o que você pode fazer pra combater essa cegueira voluntária? PARE DE COMPRAR PIPOCA. Isso teria um efeito de ataque terrorista mesmo, e se as pessoas soubessem o que iriam ganhar em troca, talvez preferissem. Porque daí o principal motivo para se estar ali seria o ingresso mesmo, o filme, o direito de assitir algo que tenha algum potencial aditivo ou transformador. Seria esse o canto da sereia: um bom filme, e não aquele cheiro oleoso que faz as pessoas salivarem. Infelizmente tenho que levantar uma conclusão da simples observação dos fatos: qual seria o número de pessoas que realmente achariam que estão ganhando trocando a pipoca por produções audiovisuais que minimamente podem ser consideradas "Filmes"? Porque cada vez que eu entro num cinema e (à parte da discussão comercial) sinto aquele cheiro besuntado, eu confundo ele com o odor de um cadáver - e o defunto é a nossa incapacidade generalizada de entender coisas simples, como o fato de que, ás vezes, alguns hábitos ou lacunas de análise tornam a gente menos humano.

Que coisa mais humana, a capacidade de se diluir o indivíduo pra se organizar a produção e as vendas! Parabéns pra nós! Longa morte ao cinema!



segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Camille Claudel


Quando vi "A onda", em 96, entendi porque Rodin teve que internar a moça. Foi fácil convencer o serviço psiquiátrico - era só dizer que ela queria ser maior que ele! eles cairiam fácil. E caíram mesmo. Como essa moça estava nadando tão mais longe, e como a gente tem que agradecer a existência de mulheres como Isabelle Adjani, cuja simples respiração imóvel já nos seria epifania suficiente. Mas ela ainda recontou Adele Hugo e Camille Claudel.

Não acredito nas mulheres, mas que existem, existem.



Uma Lacuna em "Big Bang Theory"




Quando o nerd-power ressuscita, na última década, a série que melhor representou o pensamento nerd - com mais dignidade, qualidade, humor mesmo - foi o Britânico IT crowd. Humor com uma elegância clássica, equilíbrio - e mesmo assim, engraçado. Na América, 3 anos depois de estrear, "Big Bang Theory" está bombando de audiência. Um mérito aquilo tem: algum rigor com a verossimilhança - existem bons consultores, e quando falam como alunos até agora não vi nenhum erro. Não vou meter a boca naquele nanico sem carisma algum (o protagonista), porque ele tem a mesma doença nasal de Fran Drescher, e eu não rio das mazelas alheias, por princípio. Sheldon tem o mesmo defeito do personagem de Jack Nicholson com TOC - existe gente com TOC, mas não com TODOS os tipos de TOC. Mas tem alguma coisa mais fundamental, mais direta, que resume essa sensação de que aquilo é uma boa merda, e nada mais.


Depois de contrapor com as obras relacionadas ao gênero e anteriores (como Vivas instrui), como "Real Genius" e "Revenge of the Nerds", que são filmes de formação do conteúdo replicado em BBT, percebi a falha: falta o stoner. Existem vários episódios patéticos que ilustram essa lacuna: um Sheldon insone tem que tentar dormir na casa de Howard, e este oferece um leite da sua mãe batizado com Ropinol ou coisa que o valha; Leonard, "Hadji" e Wolowitz, acampando, comem cookies "especiais" presenteados por 2 titias; Sheldon tem overdose de cafeína (!), e coisas assim. Ainda está na 3a. temporada, e isso vai acontecer com certeza mais vezes. É engraçado imaginar as peripécias que eles terão de inventar para fazê-los ficar "chapados" - sem saber e sem querer, é claro. Interessante também é notar que isso se torna incômodo por coerência interna mesmo com a composição dos personagens da série, em si - o IT crowd tinha raríssimos momentos-stoner e isso nunca depôs contra a série. É que em IT crowd eles beiram os 35 anos de idade cultural e 25 de cronológica, e isso tira o "deslumbramento" desse assunto. Em BBT, eles são ao mesmo tempo calouros (quando se trata dessas coisas) e pós-graduandos, para poderem beber quando necessário - ou seja, sempre maximizando o público!

Mas, então, por que, mesmo depois de 70's show ter escancarado o uso narrativo da lisergia (ou um parente dela), por que esses executivos não arriscaram? pode ser a fome de mercado. Um nerd-stoner pode incomodar algumas boas famílias, ou propagar valores incertos. Pode restringir público. Coisa que torna a situação mais patética ainda. Você engole um esterilizado Papai sabe-tudo e não percebe. Bom, de qualquer modo, prefiro eles ao friends, na categoria screensaver.



sábado, 16 de janeiro de 2010

Samantha, Vênus de Willendorf









Vamos começar a pôr os pingos nos i's. Muita besteira já foi dita sobre Samantha, e é tempo de esclarecer algumas obviedades. Um exemplo desse tipo de estupidez é situar o seriado naquelas velhas questões de gênero, aquele "machismo" ultrajante e etc. Chegaram a pensar que esse suposto anacronismo ia atrapalhar o filme de 2005. Para o nosso bem e por respeito ao que Samantha significa, eles bem que poderiam ter acreditado nessa balela e não ter feito aquele patético e desonesto "Bewitched" de Nora Ephrom (você, que está lendo, com certeza concorda comigo que aquilo tenha sido um dos piores filmes de todos os tempos). O que eu quero dizer é que o machismo no seriado é, no limite, uma das piadas. Qualquer olhadela mesmo preguiçosa sobre a obra mostra claramente que, ao contrário do que a miopia da turba permite inferir, o que se diz ali do arquétipo feminino é uma verdadeira apologia da dominação oculta do mundo.

O equívoco é bem simples: Samantha é escrava apenas de sua ignorância, e não de uma condição social. Essa idéia de que "Você colheu um limão no jardim do amor" é febrilmente repetida por Endora (Endora, a sogra, é divorciada, absolutamente independente e segura; ainda assim, nada tem de "feminista", porque, nós, mortais, e quaisquer "grandes questões" que possamos ter são invariavelmente irrelevantes para ela - para os mortais a independência é uma conquista cultural; para um bruxo, é uma extensão natural da personalidade). Samantha é um pouco mais complexa do que uma dona de casa do subúrbio tentando fazer o serviço doméstico sem usar magia porque "seu marido mandou". O que acontece, ali, na verdade, é um embuste lógico: essa submissão poderia até ser verdadeira para alguma mulher, mas Samantha não é uma mulher. Ela é tão mulher quanto Jesus era um homem. É uma mulher que recebeu a impostura de ser bruxa. Ela é, portanto, uma Divindade, como a Mulher Maravilha, Atena ou Nossa Senhora de Fátima.














Existe ainda o efeito complicador dos componentes humanos, provavelmente devido a milênios de cruzamentos raciais - a situação mestiça análoga à do Dr. Spock e Hermione Granger. Essa questão não está exposta claramente, mas isto pode ser intuído tanto do preconceito de Endora quanto de outros casais interraciais que aparecem em vários episódios. Tabatha, a filha, é bruxa, mas seu irmão Adam não, por exemplo. O resultado é que eles acabam se comportando como os deuses na Ilíada: a parte da alma que é humana afeta o equilíbrio do resto. Eles estão lá, no Olimpo, mas também estão interferindo na guerra de Tróia, tomando partido, descendo e cruzando conosco, ou seja, se voltando para um monte de coisas que não a si mesmos.

Samantha, como observou Nascimento, é "um anjo caído pelo amor". Ela não precisa de Darrin, nem de nenhuma experiência emocionante aqui na periferia. Seu dia é o século, e essa passagem pelo subúrbio e pela condição humana não lhe causa dano, ainda que só pelo efêmero, em si, desse período. Ser uma epifania e se reduzir ao casamento pequeno-burguês é a uma concessão temporária, independente do resto. Assim, o casal que mora em Morning Glory é a união de um marido publicitário de sucesso e uma esposa que é uma deidade de dezenas de séculos de idade que fala todas as línguas (mortas ou vivas), esteve presente em todos os eventos históricos importantes, foi tantas vezes até a Lua que desdenha do projeto Apollo, e que - no caso específico de Samantha - é quase como uma depósito ambulante de sabedoria.

Jeannie e Samantha são a metáfora da latência de um inconsciente coletivo recorrente, quase regular, do conteúdo feminino. As mulheres são submissas, mas por opção (no caso de Samantha) ou feitiche (como Jeannie). E possuem Poder, como nunca cada qual de seus respectivos homens possuiu. Ao mesmo tempo, secreta e indiscutivelmente, tomando a rédea do mundo. A maior atribuição de carisma desde as deusas da fertilidade do neolítico.



quinta-feira, 30 de julho de 2009

Batman é Proust?




"Batman é Proust" é uma feliz reação a um infeliz (na melhor das hipóteses) comentário do Inácio Araújo. Fazer uma cagada é o melhor meio de perceber que você é um bosta, e, além disso, derrama estrume sobre a terra - ou seja, fertiliza. Este lugar é o mato que nasceu de toda essa merda.



CARTA A INÁCIO ARAÚJO


Em 04 06 2009, A Folha publicou:

Segredos de "Batman" são uma bobagem

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Os fãs de Batman adoram "Batman Begins" (Warner, 23h; não indicado a menores de dez anos) e o outro Batman dirigido por Christopher Nolan. Eles não costumam gostar dos filmes dedicados por Tim Burton ao herói. Eles também odeiam quem não gosta do último "Batman" de Nolan (entre eles, eu).
Teremos de viver com isso, pois nunca me liguei no Batman, desde a tenra infância, quando aquilo era mera diversão e não, como se quer hoje, obra-prima à altura de Proust. Aquela máscara, o segredo todo, desculpem os batmaníacos, me parece uma bobagem. E Gothan City, um lugar nem tão interessante. Servia só para matar o tempo, enfim.
Na minha visão (minoritária, admito), Tim Burton salvou-o ao distorcê-lo. Nolan o recoloca nos trilhos. Aqui, a gênese, a iniciação, com suas infelicidades e aprendizados. E, por fim, a volta a Gothan e o heroísmo unívoco. Neste filme, eu gosto mesmo é de Michael Caine, o mordomo distante, quase cínico. Mas aqui fala a minoria.


Bom, é tanta planície que me dá fadiga... tanto equívoco, tanta estupidez, que não daria pra passar do desprezo - só que, ao fazer mais uma das suas geniais colocações, Inácio, você conseguiu (sem querer) acertar a lança bem no alvo: "aquilo era mera diversão e não, como se quer hoje, obra-prima à altura de Proust."

Em primeiro lugar, é de uma espantosa ignorância que surge a idéia de que os fãs de Nolan e Burton são pessoas diferentes. Nolan e Burton fazem aquilo que se espera de gente que reza pras musas e tem engenho e Arte: ambos têm uma visão própria da coisa que se filma; têm espessura, competência, excelentes concepções daquilo que o Batman encerra, no caso. Essa coerência interna das diferentes partes da produção, da direção de arte, direção, etc é a assinatura do artista. É onde eles vão ser julgados. E, no caso destes diretores, ambos estão enxergando pela mesma lente, em essência. Colocá-los em oposição e ainda por cima lhes atribuir maior ou menor qualidade, nesse caso, é um movimento retórico inútil - na melhor das hipóteses.

Em segundo lugar, aquilo que você quer dizer com "recolocar nos trilhos e portanto torná-lo chato" - um arroto do seu inconsciente que chegou à boca sem fazer muito sentido - é que o Batman do Tim Burton SERIA algo análogo ao Batman da série dos anos 60 (Soc! PoW!), e como o você "nunca se ligou" a nada muito além daquele Batman, lhe parece que Burton endossaria sua visão tão brilhante desse engodo que é a tal "dimensão psicológica" do Morcego. É óbvio que Burton bebe nessa fonte, mas é óbvio também que bebeu no "Asilo Arkham" de Grant Morrison, no Batman de Bob Kane e em inúmeras outras. E sabe o que esses "Batmen" têm em comum? a abissal dimensão psicológica! Pra mostrar a besteira contraditória que você falou, nem precisava ir tão direto ao busílis: só a concepção de Gotham de Burton é o suficiente pra que essa analogia morra, num ponto bem primário, porque a Gotham de Burton É um personagem - no mesmo sentido do que é visto em "Metrópolis" (Osamu Tekuza, 2001), por exemplo - e isso não tem paralelo com a série. E isso é apenas pra colocar UM ponto da discussão, veja bem!

Finalmente, em terceiro lugar, quando a gente se propõe a meter a boca, tem que conhecer a coisa. Tipo, escrever "Gotham" corretamente seria um bom começo.

Mas e o Batman, em busca do tempo perdido? é isso. Quando o Batman e o Coringa terminam a "piada mortal" de Alan Moore, caem máscaras no chão como peles de amendoim. A gruta, o segundo ritual de passagem, todo o percurso "Salário do Medo" que o Morcego faz pra se tornar uma noturna sombra, ágil, moralista, tudo isso faz do Batman o Herói Ocidental, o homem contra os deuses, a tentativa de recolocar os eixos dos Deuses e da Terra em sintonia. É uma pena que o você não veja nada além das câmeras inclinadas e ganchos, porque está ali. E bem nítido e escancarado, inclusive. Só precisa tratar a catarata.

Existe muito mais a se falar sobre os dois Batman, e suas desnecessárias colocações foram catalisadores vigorosos, nesse caso. Algo que não se pode negar após ler isso que você escreveu é que urge aclarar os fatos - pra dizer o mínimo. Nesse sentido, das merdas que você falou podem nascer lindas flores.

Um Abraço,

Marcos Vieira (Shmoo)